sexta-feira, abril 23, 2010

O segredo de seus olhos

Há noites que ventam mais, é quando nos recolhemos em casa. Estamos cansados do dia que pareceu-nos vazio. Como se pode viver uma vida cheia de nada, nos perguntamos. Um turbilhão de imagens nos escurece a vista. Estamos presos ao passado: damo-nos conta disso; de olhar para um feixe de lembranças, embora de tão vivas se escapem num tempo incerto. O ontem pode ser tão longe ou tão perto. Perdemos a noção da duração das coisas, e os sentidos se resvalam num romance nem sempre verossímil. Por que não me levou contigo? Bate renitente o vento cobrindo a cortina, por que não me levou...

Quando nosso olhar nos dizia tudo por não calar; por não olvidar de nos inquirir – o que faremos, eu e você; por nos excomungar das regras do mundo; por nos sorver da alma os receios; por amar o que se deveria; por brincar nas pontes e querer saltar montanhas; por, enfim, querer consumir o tempo num segundo, em duas palavras, sem temor, sem dizer que o "temo" – mas com um “a” no meio, entre "te" e "mo".

Já não sei se é uma lembrança de ontem ou de muito tempo. Quem era você? Como era? Era jovem, era jovem, mas era a mesma pessoa. Minha vida foi olhar para trás. Creio que me diria hoje: que “mi vida entera fue mirar para delante. Atrás no es mi jurisdicción; me declaro incompetente”; que sua vida inteira foi de eliminar os dias de minha ridícula apreensão.

O que temos a oferecer neste tempo incomum? Uma dialética a buscar tergiversando uma síntese sem tempo e sem piedade. Na estação, os trens chegam e partem. Nos vagões, em cada janela observo para te ver chegar. Minhas dores estão livres, e meus olhos me perguntam sobre os seus.

[Impressões sobre o filme El segreto de sus ojos, Juan José Campanella, 2009]

sábado, abril 03, 2010

Enquanto o Sol não vem

Retorno ao Imago Mundi com novos ares. Mudando residência para o Rio de Janeiro, é hora de aproveitar as excelências de uma estimulante agenda cultural. Para inaugurar a peregrinação nas inúmeras redes de multiplex da capital fluminense, escolhi o CineMark - Downtown, na Barra. Para minha surpresa estava em exibição um filme da cineasta francesa Agnès Jaoui, Enquanto o Sol não vem, de 2008 (Parlez-moi de la pluie). De Jaoui já havia me sensibilizado em sua obra anterior premiada em Cannes, Questão de Imagem, que será oportuno comentarmos noutro momento. Mas agora devo aproveitar a degustação recente das imagens de Enquanto o Sol não vem. Farei uma sinopse seguida de impressões sobre o filme.

* * *
Agathe Villanova, uma feminista recém-ingressa na política, retorna à casa de infância no sul da França, ajudando a selecionar com sua irmã Florence os pertences de sua mãe, que morreu há um ano. Nesta casa vivem Florence, seu marido e seus filhos. Mas também Mimouna governanta, que Villanova trouxe de volta com eles da Argélia, na época da independência. O filho de Mimouna, Karim e seu amigo Michel Ronsard decidem fazer um documentário sobre Agathe Villanova, como parte de uma coletânea documental de mulheres que venceram na vida. É o mês de agosto. É cinzento, chove. Não é normal. Mas nada vai acontecer normalmente! Todos esperarão a chuva passar, considerando o retorno da primavera na vida de cada personagem.

A diretora, roteirista e atriz Jaoui, que sempre divide o roteiro com seu marido Bacri, longe das grandes produções que engole orçamentos e pipoca, seus filmes fazem parte de uma perspectiva humanista. Eles falam sobre nós, ocidentais, e mais particularmente do comportamento dos franceses aos problemas políticos e pós-colonização que vivem. A chuva não é uma exceção à regra. Depressão, outro tema recorrente em seus filmes, é interpretada por Jean-Pierre Bacri, personificando um jornalista desempregado, provocando-nos o filme a examinar o que somos e o que pretendemos ser. Karim interpreta alguém que foi capaz de livrar-se das divisões de classe na sociedade. Filho de uma empregada assediada por seu marido, ele quer ir mais longe, e não apenas correr riscos. Ele quer fazer um filme sobre o que vê como a síntese da hipocrisia social. Da mesma forma, Agathe Villanova interpretada por Agnes Jaoui, finalmente percebe que seus desejos foram motivados por uma espécie de carreirismo e que, finalmente, há mais vida para além do que ela esperava. Deixa-se descobrir um pouco conservadora, apesar de feminista, percebendo que o amor é mais forte do que qualquer coisa. O filme nos traz os pensamentos que vão além do filme. Não apressando o espectador, Jaoui leva sua câmera mais próxima aos seres humanos na sua mais frágil e mais preciosa intimidade ante as verdades que devem ser enfrentadas. E quanto mais nós rimos do começo ao fim eles continuam a falar sobre a chuva! Uma pedra preciosa. Uma esperança de renovação.