domingo, setembro 26, 2010

Diálogo com Maya Da-Rin, sobre seu filme Terras.

Tem dias que somos tomados pela sorte. E não duvido que a temática circunscrita, apesar das relações esgarçadas da metrópole, sobre as fronteiras, se aproxime mesmo desta forma. Qual seja a de escalar muros de sal. Um pouco de água faz aplacar qualquer resistência, daí se desmorona o imenso muro da razão – esse monte salgado de previsibilidade. Dito de outra forma, o encontro com Maya é um encontro de águas. Tanto seu filme quanto sua prosa soa imprevisível a cada seqüência. Quais paisagens líquidas recuperam a memória depois daquelas texturas...

Ora de liquens, de raízes, de cascas de árvores; ora de peles, de terras urbanas, de sons ancestrais; também de gostos, de cheiros, de sinestesias; além das ruas, das formas e dos lugares. Afinal todas essas texturas falam de gentes se interpenetrando sem se confundirem; ou se misturando sem se preocuparem com heterogeneidades. No final há um branco a unir todas as cores. Entre dois entes, Letícia e Tabatinga, há um infinito de sensações: amarelas, negras; brancas, índias. Quisera ver os sonhos de Letícia; houvera crer nos pesadelos de Tabatinga. O esverdear de ambas nos olhos dos habitantes é uma constante do centro à periferia. São duas cidades que cabem numa só. A mata abraça-as. E os corpos abraçam a cidade como uma experiência sem limites.

Transição, suspensão, mistura – ela me diz. Mas um lugar rústico, imenso a causar impacto. Uma polifonia limítrofe; margem fronteiriça de múltiplas vozes. Por que os brancos dividem a terra? Pergunta aquela de olhos puxados. A terra é também nossa deusa. Completa a indígena com utensílios colonizados, além do facão empunhando a sabedoria das trilhas no labirinto da floresta. Maya-Câmera flagra a intimidade dos ritos e alcança o chá-de-quimera dos iniciados. Eles vêem os deuses conversarem sobre o futuro através de serpentes, de árvores e de cores. Se lhos perguntasse, o que haverá amanhã? Por certo responderiam, há um país entre nós; uma ponte de rio. Embora a geografia seja uma ficção dentro de um documentário.

Tudo está difuso na paisagem. Assim como estão difusas as fronteiras. Elas não terminam nas linhas divisórias. O começo de cada território é uma alma querendo habitar o mundo. E o fim de cada corpo é uma territorialidade movendo-se noutra. O que flui e reflui no espaço-tempo dos sujeitos é uma paisagem em movimento perene, ora centrífugo, ora centrípeto. Expande-se ao mesmo tempo em que se comprime essa mobilidade dos corpos. Metamorfose, metabolismo, meta-política, meta-geografia. Uma transformação mutante, tal caixeiro-viajante que percorre milhares de distância para reiniciar sua volta – um retorno de Ulisses no intento de deslindar os mitos, os silêncios e as cifras do mundo.

Foi tudo isso, Maya, que pude colher de sua prosa e de suas imagens.