quinta-feira, agosto 03, 2006

Cinema Nacional [1] - Terra Estrangeira

“Penso ou tenho a ingenuidade de pensar que uma crítica sistemática dos recortes e dos contextos praticados até agora pela historiografia do cinema brasileiro, bem como de suas articulações, poderá contribuir para uma renovação do nosso discurso histórico.” Jean-Claude Bernadet [Historiografia Clássica do Cinema Brasileiro. Anna Blume: São Paulo, 1995]

Depois de Carlota Joaquina, princesa do Brasil (1995) de Carla Camurati, o filme pouco conhecido de Walter Salles (em parceria com Daniela Thomas), Terra Estrangeira (1995), marca o advento do período de renovação do cinema nacional. É sabido que a era Collor fez fenecer as bases de financiamento estatal para a produção audiovisual no Brasil com a extinção da Embrafilme. O epígrafe inspirado na análise oportuna de Jean-Claude Bernadet adverte sobre um discurso histórico dinâmico capaz de renovar a compreensão dos rumos do cinema no Brasil, que não se basta por uma periodização cronológica somente. Bernadet chama-nos a atenção sobre uma crítica que articule recortes e contextos, ou seja, uma periodização sintonizada com a complexidade das variáveis sociais.

O fôlego para um momento de inovação da geração de novos diretores que, devido às dificuldades de produção daquele período (meados dos anos 1990), ousaram em concepções consistentes de um olhar renovado à obra fílmica, é testemunhada com vigor em Terra Estrangeira. Sabendo capturar a crise da produção artística no país, Walter Salles, num exemplo de filme autoral por excelência, participa da história do cinema brasileiro como exemplo de diretor que soube elaborar um texto visual consistente sobre esse momento crítico.

A crise gerada pela falta de incentivo, sobretudo pelo corte de recursos do orçamento da União para as artes, criou um descontentamento da classe dos artistas. Muitos cineastas arrumaram malas e seguiram viagem para outros países, assim como muitos brasileiros com suas poupanças congeladas abandonaram o país naquele ano que a moeda nacional praticamente tornou-se o dólar. De outra sorte, a criatividade e efervescência foram as saídas para aqueles que ficaram. No cinema, uma retomada aos poucos foi ganhando força, trazendo propostas autorais valiosas. Terra Estrangeira é uma delas, resultante dessa retomada, e também exemplar por tematizar sobre as angústias do brasileiro que vê como melhor saída fugir de seu próprio país. Além disso abre motivos paralelos de reflexão do indivíduo num mundo estranho a ele, cuja identidade é turvada pelos obstáculos do mundo-lá-fora.

A estória reúne personagens cujas existências são de um vazio entre os tempos e espaços que vivem. O tempo como duração do sonho que ainda não fora realizado. O espaço como local vivido na realidade banal, mas também como lugar imaginário – recanto e fuga da alma. Assim vamos encontrar Paco (Fernando Alves Pinto), jovem aspirante a ator, que assume o sonho da mãe de reencontrar seus ancestrais em terras da Espanha; Alex (Fernanda Torres), uma mulher perdida na Europa, envelhecida pela necessidade de sobrevivência, entorpecida por um amor masoquista sem nada lhe dar em troca. Vemos também figurantes que personificam o preconceito vivido por qualquer estrangeiro numa terra estranha, os guetos de africanos e brasileiros numa Lisboa anacrônica, renitente no ranço do olhar colonizador. (Salve a memória do grande Glauber Rocha, no seu grito de descolonizar a cultura nacional).


No continente europeu todos esses personagens irão se encontrar para viver um drama em preto e branco, trazendo em parte o olhar de angústia do diretor sob o abandono político às artes em nosso país. Walter Salles faz uma ótima alusão entre as gerações dos 1970 e a dos anos 1990. A primeira que lutou contra a ditadura, marcada pela “alternativa” do exílio. E a outra, apesar ter alcançado a tão ansiada democracia, uma geração que se vê diante de um Brasil sem esperança, vendo melhores perspectivas de partir para uma terra estrangeira. Salles, para reforçar essa metáfora de gerações, insere na trilha a música Vapor Barato, de Jardes Macalé, aproximando essas duas épocas de ideais frustrados. De certo modo a canção também fala sobre a solidão de quem está perdido como um navio encalhado na praia.

Oh, sim! Eu estou tão cansado, mas não pra dizer que eu não acredito mais em você. Com as minhas calças vermelhas, meu casaco de general, cheio de anéis. Eu vou descendo por todas as rua, se vou tomar aquele velho navio. Eu não preciso de muito dinheiro, graças a Deus! E não me importa, honey. Oh, minha honey baby! ("Vapor Barato", de Jardes Macalé).

Certamente, a experiência de ver esta obra provoque a sensação de que terra estrangeira seja “um lugar para se perder de alguém ou de si próprio”.


terça-feira, agosto 01, 2006

O que não se vê, mas que se sabe...

Fico contente em falar sobre pequenas coisas essenciais no cinema. Diga-se de um cinema disposto a valorizar a expressão do que há de singularmente humano em imagens. Não seria demais evocar algumas lembranças depois de uma sessão que nos solicita criar um sentido da obra assistida; depois de ver-se nela sem ter percebido que nos víamos.

As pequenas coisas que aludo são os detalhes da arte de trabalhar com o aparato fílmico; como o diretor concebe suas idéias para escrever o seu texto visual com o olho da câmera. Da mesma forma, cá fico imaginando como poderia melhor me exprimir, em quais idéias deveria insistir a fim de provocar naquele que lê uma compreensão não percebida e nem imaginada por mim.

E todo este suspense, para quê? Talvez porque vamos comentar um suspense despretensioso, elegante, inteligente, que merece este curto prólogo acerca do que ele deixa em suspenso, daquilo que a maioria, de certo, ache aborrecedor. É compreensível que a platéia faça cara feia, ou saia no meio da projeção. Ou que se cochiche a quem está ao lado: “que filme bizarro, não entendi nada”, ou ainda “que estranho, o filme terminou no meio!” De um modo ou de outro o diretor conseguiu pôr o espectador em estranhamento, em questionamento, e em relutância para aceitar tudo aquilo que não lhe parece filme. Isto não é filme. Isto é um fiasco de história mal contada, diriam os mais irascíveis.

Refiro-me ao filme Caché (2005) de Michael Haneke. O próprio título revela em parte a proposta do diretor. Caché, não confundir com cachet, honorário pago a um artista; caché refere-se ao particípio passado do verbo cacher, esconder, dissimular. Caché, portanto, é o que dissimulamos à vista. Um tesouro escondido. Uma paixão absconsa. Haneke nos propõe então chercher le sens caché d’un message (procurar o sentido escondido de uma mensagem). E que mensagem é esta, é o que vamos tentar construir num olhar, num sentido para ela, e não advinha-la. Na verdade, não há apenas um sentido. Cada um pode acrescentar o seu, conforme sua sensibilidade. Pois não estamos diante de uma obra clássica. Pelo contrário, ela não é nada conservadora. Os filmes clássicos obedecem a fórmulas previsíveis e a determinações de estímulos e sensações bem conhecidas. Incomodar-se com um filme não é nada ortodoxo, é poder experimentar o sabor de querer recriá-lo. Em Caché, o diretor sugere simplesmente, não apresenta nenhuma fórmula que seja para informar resultados no final.

Trata-se de um drama dentro de um cotidiano que se perdera o controle. O drama-suspense de um casal que mal se toca, mal se encontra, cuja relação tornara-se fleumática, sentimentos a parte, carinhos reservados ao sono e aos sonhos ou perturbações particulares de cada um. O desassossego gravita, sobretudo, em torno de Georges (Daniel Auteuil), apresentador de um programa televisivo de críticas literárias. Aparentemente, mantém um casamento feliz com sua mulher Anne (Juliette Binoche), distinta funcionária de uma editora. E tem um filho, Pierrot (Laster Makedonsky). Se a relação dentre os membros desta família já era distanciada, passa a se tornar agressiva depois que Georges começa a receber vídeos que mostram o cotidiano de sua família e desenhos alarmantes cujo significado é obscuro.

O curioso é que os vídeos recebidos vão se tornando cada vez mais invasivos, com imagens de maior intimidade. Georges não recebe nenhuma ameaça direta, portanto a polícia não pode ajudá-lo. Ele terá que descobrir por si só o que está acontecendo, ao mesmo tempo que se reencontra com o seu passado.

Haneke, na seqüência inicial de Caché nos põe diante de um quadro imóvel. Entram os créditos iniciais. Depois entendemos que ele filma o passado, em vídeo, do protagonista, que poderia ser o do espectador. O texto visual é um passado renitente. Quando pensamos no tempo real, já estamos no passado. As lembranças de um passado que parece não ter mais importância, porém evocadas no fluxo de consciência do protagonista. Sua consciência sai de seu entorno banal (dos livros, das críticas exteriores, do isolamento racional) e transfere-se para o medo do passado pela ameaça de um inimigo externo. As imagens clandestinas cada vez mais íntimas o fazem perceber que a ameaça está dentro do próprio lar ou dentro dele mesmo. Não é à toa, portanto, a opção do diretor por planos mais abertos durante quase todas as seqüências.

Somos convidados a interagir com as cenas. O plano aberto, a câmera imóvel, e o close por trás dos atores nos convidam a fazer parte do elenco ora como protagonistas ora como coadjuvantes. Não se trata de “voyeurismo”. Melhor entendido, somos provocados a entrar no personagem para entender suas angústias e pulsões.

Coisa especial no cinema, a possibilidade de ver-se na singularidade humana das imagens depois de nelas perceber que nos víamos estranhamente. Será que somos um passado inconcluso? A cada segundo somos o que ficou. O que há escondido que não se vê, mas que se sabe...