domingo, julho 30, 2006

Notas do subsolo [2] – cinema e literatura: duas linguagens

Um dos mais lúcidos roteiristas de nossos dias, o francês Jean-Claude Carrière, em sua obra “Linguagem secreta do cinema”, discute de forma perclara a inviabilidade da comparação entre linguagens. Há várias linguagens ou meios artísticos de expressão. A literatura talvez seja o meio de comunicação mais antigo da humanidade. Seminalmente, a “literatura primitiva” tinha como base representações pictóricas e, posteriormente, normatizada em estilo e senso estético pelas gramáticas de cada cultura. A oralidade, portanto, é a matriz das linguagens da humanidade. Da antiguidade até nosso tempo os meios de expressão artísticos, entendidos modernamente como Artes, desenvolveram-se e estiveram reunidos sob diferentes formas.

No Ocidente, até os tempos medievais, as linguagens artísticas encontravam-se consorciadas com a simbólica religiosa, com as idéias filosóficas e com as artes liberais (ciências) daqueles tempos. Com o advento da modernidade, desde o cogito cartesiano, o racionalismo passou a ser o referente privilegiado em detrimento das artes. Se havia um nexo entre o campo da arte com os da ciência, filosofia e religião, hoje vivemos de resíduos dessa consistência. E a ciência, por fim, através das luzes da razão prometera restaurar o mundo em liberdade, igualdade e fraternidade. Ledo engano. Nos encontramos cada vez mais especialistas no domínio das técnicas e bem menos cuidadosos com o princípio da ética. As novas tecnologias querem imitar o sonho humano do infinito, da possibilidade ilimitada da matéria, que é uma tontice! E seria uma boa reflexão para se discutir noutra oportunidade. Contudo, é mister entender que as novas tecnologias têm propiciado novas linguagens, e o mais essencial, vem tornando possível uma simbiose, senão uma confusão entre elas.

A fusão de linguagens artísticas foi pensada e experimentada no cinema desde suas origens. Desde Georges Méliès, com suas trucagens, oriundas dos espetáculos de prestidigitação, passando pelos filmes de Peter Greenway , com a sobreposição de camadas na imagem (de textos escritos, sobretudo), até o filme digital de hoje, a exemplo da estética experimental no cinema, as tentativas de fusão de literatura, dança, música são notórias. Com o teatro, por exemplo, Lars Von Trier, em Dogville, anuncia uma linguagem ousada de imagens utilizando-se de marcações e limites característicos do aparato teatral. Entretando, as artes se misturam sem se confundirem. Elas se interpenetram entre si sem se misturarem. Daí que uma obra literária adaptada para o cinema não pode ser mais considerada como texto literário propriamente, trata-se agora de um texto visual trabalhado para outra linguagem com características diferentes, que seja agora cinematográfica.

A linguagem cinematográfica é a mais recente dentre os meios artísticos de expressão. O cinema, que tem como princípio básico a imagem em movimento, distingue-se da fotografia e da pintura, suas co-irmãs. O que aparenta o cinema com outras artes é sua capacidade de dialogar com diferentes linguagens. E na história, vamos encontrar diversas propostas estéticas no cinema conforme idéias de montagem e roteirização empregadas. Cada proposta estética interage variadamente na criação das obras fílmicas, conforme o modo como os elementos básicos da linguagem são trabalhados. Podemos, por exemplo, contar visualmente uma mesma história de diversas modos. Como o diretor irá decupar as seqüências do roteiro, como conceberá a fotografia (angulação, movimento e filtros da câmera), é como na literatura fazer uma escolha se o conto será escrito em primeira ou terceira pessoa. Claro, isto é uma comparação grosseira, porque os elementos da linguagem literária são peculiares a essa arte.

Noutra ocasião, voltaremos a este tema interessante. Nas Notas de subsolo [1] advertíamos sobre o descuido de uma observação costumeira entre cinéfilos, a de que “o livro é melhor que o filme” ou vice-versa. Nota-se, entretanto, depois do que discutimos aqui, a devida qualidade e peculiaridade de cada linguagem. Cada arte possui sua gramática e o cinema, para quem queira aprofundar-se, possui inúmeros manuais ou textos ensaísticos sobre a linguagem cinematográfica. Vale a pena seguir os passos de Ismail Xavier em seu “O Discurso Cimatográfico” ou do texto básico de Marcel Martin, “A Linguagem cinematográfica”. Devemos julgar, portanto, cada linguagem por si mesma. O livro pelo seu “valor” literário, e o filme pela sua consistência estético-cinematográfica.

sábado, julho 29, 2006

Notas do subsolo [1] – O “Código” mais uma vez

É costume se ouvir, entre os mais incautos, a seguinte exclamação: "o livro é muito melhor que o filme!" Vamos tomar um exemplo recente. O mais badalado produto da mídia de 2004 em diante, ora amado ora odiado, o "Código da Vinci" de Dan Brown.

Depois de dividir opiniões entre católicos, leitores do pseudo-esoterismo new age; e de tumultuar o imaginário da simbólica cristã, sedimentada e preservada há mais de dois milênios pela Igreja; e depois de levar ao tribunal o autor dessa trama ficcional especulativa, e de sucesso de vendas, acusado de plagiar as idéias de outros três autores da obra anterior “A Linguagem Secreta do Graal”; depois de tudo isto nos perguntamos o que há de tão extraordinário neste livro a ponto da indústria americana de cinema adaptar para a telona, a custo de milhões de dólares, as especulações grosseiras sobre o mistério do Graal e os desdobramentos deste símbolo. Nem possuímos a verdade, e nem desejamos discutir sobre aspectos metafísico-religiosos em torno do Graal. Queremos apenas nos deter no seguinte: trata-se simplesmente de um livro de ficção, e como tal foi adaptado ao cinema a exemplo de centenas de outros.

Voltemos ao Código. Um romance tipicamente policial acrescido de dados históricos e com uma “surpresa” para o grande público, a de que Cristo teve uma linhagem com Maria Madalena, sendo ela o próprio símbolo do Graal. De fato, a curiosidade pela massa sobre essa tese ousada no romance é um prato cheio para mais e mais especulações. Em todo romance policial, o que importa é a intensidade, nada mais, mesmo que os dados estejam alterados ou manipulados para o encadeamento do enredo desejado. Melhor seria degustar os clássicos de Simenon, com o detitive Maigret, ou saborear o maravilhoso “O Silêncio da Chuva” do brasileiro Alfredo Garcia-Roza. Segue outra boa dica: os não menos intensos e inteligentes policiais-noir de John Dunning, com seu detetive bibliófilo. Tais romances pelo menos não preferem autenticar o que não lhe são de competência. Apenas dedicam-se a um gênero de literatura com a acolhida de um público cativo. O Código bem que poderia ser um romance policial como outro qualquer.

Francamente, seja o livro ou o filme, não vejo neles nenhum legado artístico importante. Aliás, nem podemos comparar a literatura com a linguagem cinematográfica. São linguagens bem distintas. Mas no caso do Código, que Da Vinci o perdoe em sua magnitude artística, só tenho a dizer que tanto o livro quanto o filme são muito pobres do ponto de vista da linguagem. No entanto, para a academia holywoodiana o filme foi uma boa oportunidade de contar uma estória com início, meio e fim, com cada clímax previsível, o que ela melhor sabe fazer.

Tomara que Audrey Tautou não venha a ser canonizada pela academia por essa parca atuação. E se os americanos gostam de inventar e brincar de deuses, lamentavelmente não conseguiram fazê-la andar sobre as águas.

quarta-feira, julho 26, 2006

a alquimia de sabina

Imagine-se no lugar de uma alma feminina com surtos de histeria grave e vestígios de esquizofrenia. Na tenra juventude de dezoito anos, internada pelos pais no renomado hospital psiquiátrico Burgholzli, em Zurich, capital suíça, em princípios do século XX. Imediatamente você passa a ser tratada por uma terapia nova, baseada na associação de palavras, método desenvolvido pelas investigações freudianas. Em poucos meses cura-se da crise, embora alimentada por uma paixão irremediável a seu médico.

Seria apenas um caso típico de transferência positiva, segundo o jargão psicanalista, esse amor sanando sua psique? Foi possível conceber sua cura por uma projeção de conteúdos inconscientes numa relação afetiva? Parece que sim, depois de uma relação amorosa intensa, apesar do desejo interrompido de não realizar a maternidade com seu terapeuta-amante. Um filho que esse amor lhe premiasse era muito importante para você, embora tendo que compreender as dores do parto de um amor inconcluso. Restabelecida, em parte, sob a recusa de efetuar com ele a integração preterida, sua vida prossegue tendo como referencia esse episódio de cinco anos em sua vida.

Você se chama Sabina. Sabina Spielrein. Seu médico, Carl Gustav Jung.

Peço licença, agora, para pintar um quadro simbolista sobre sua história, se a compararmos com uma alquimia. Uma alquimia de Sabina. As metáforas são boas para se saber das imagens formadas no vidro da janela, e não das que estão na paisagem; das coisas que podemos ver de novo modo ou sentido, sem necessariamente tê-las que substituir por outras aparentemente semelhantes. Ortega y Gasset que o diga com sua arte desumanizada. Não que você, Sabina, seja desumana, mas que seu afeto e carisma puderam percorrer uma jornada diversa na alma. Sua viagem profunda não foi em vão. Seu amado Jung também a quis entender posteriormente como metáfora alquímica da alma.

Seu terapeuta-amante descobriu que o problema central da psicologia é a integração dos opostos, que resultaria na individuação ou realização anímica do indivíduo. O que é muito claramente percebido na Alquimia. A realidade das operações alquímicas é psicológica, e aparentemente física. Na linguagem dos alquimistas a matéria, ou alma, deve ser transubstanciada desde sua densidade caótica, e dispersa, à sua leveza e sutileza integrada. Foi certamente com você, Sabina, que Jung primeiramente percebeu que o encontro de duas personalidades é semelhante a mistura de duas diferentes substâncias químicas: uma ligação que pode a ambas transformar.


PS: É possível apreciar um pouco dessa alquimia no belo texto visual de Jornada da alma (Prendimi l'anima, 2002), de Roberto Faenza, com a visceral interpretação da inglesa Emilia Fox (como Sabina). E naquela balalaica proibida, perdoada pela história...

sexta-feira, julho 21, 2006

Entre duas Cores


A dança da vida transita entre duas possibilidades, é o que parece para os legítimos amores proibidos. Antes, dizer sobre a mistura de cores e sensibilidades.

Uma moça, tão humilde, na sisudez de uma formação puritana, vê-se impedida de seguir adiante o ofício de misturar cores, ou melhor, de sabê-las operantes na formação de um métier artístico. No ateliê de Vermeer, aprendeu sobre pigmentos e seus veículos, a preparar tintas de mais variadas cromas, assim como educar o olhar para a composição, os jogos de luzes e a representação do espaço. Quais mistérios encerram o ofício do pintor? Ela ousou saber na infelicidade da escolha forçada.

A moça apaixonou-se pela arte, embora soubesse que este amor lhe roubaria a soma dos dias na casa do mestre; lhe deixaria na dúvida de seguir a fortuna entre dois mundos deveras opostos. O seu mundo mais rente, real, do açougueiro-pretendente a lhe oferecer quadros rústicos, inclusive os limites de qualquer existência; ou o seu mundo menos acessível, porém mais desejado, ideal, cujo sonho e sensibilidade pintam-se originais. O primeiro é presente, o outro, onipresente, a lhe infundir o desejo de saber-se nele. Tão grande a dita de dialogar com as cores com o mestre sabedor de todas elas, embora impedido de pintá-la.

Mas ele a pintou como única, com a aura exigente daquela obra-prima. A obra de arte ainda possuía o princípio de aura naqueles idos setecentos. Composição de fina maestria, cujo tema gravitava naquela pérola proibida. Moça com brinco de pérola, é assim conhecida. Título homônimo do filme de Peter Webber, baseado no romance de Tracy Chevalier. A cada seqüência da película somos levados a contemplar um quadro barroco holandês, prodígio assinado pela direção de arte de Christina Schaffer e pela fotografia precisa de Eduardo Serra.

O gênio criador permanece com Jan Vermeer, matriz desta história. Se a rosa-dos-ventos surgida no início e final da projeção lhe levar a outras paisagens e composições, permanece desperta sua compreensão de qual caminho seguir, entre duas cores, a de pigmento de chumbo, eminentemente real, impiedosa, urgente; ou a etérea, de azul prússio com pinceladas de ocre vermelho e amarelo, ideal, sem volta.

sábado, julho 15, 2006

eXistenZialismo


Depois de assistir ao último filme de D. Cronenberg, "eXistenZ", é difícil de se reconectar ao "real". A realidade virtual experimentada pelos personagens resignifica o sentido da "existência". Um real metamorfoseado de ilusão, de simulacro, de "maya"; um virtual justificado pela existencia do paroxismo de indivíduos esquizos e convulsos. Imagens de mundo a cada instante que se renovam. Entre as incertezas da realidade, um sentimento de vazio desestabilizador de qualquer "atualidade". Tempo dissolvido num espaço que não se consorcia necessariamente com o real. Realidade virtual ambientada no artefato-homem-bio-cyber. A metafísica do virtual como o "soma" entorpecente num admirável mundo novo.

Há filosofia para o virtual? Sartre negando qualquer metafísica, entendia a existência anterior ao conhecimento. Para seu existencialismo agnóstico, não há nada além da morte. Estamos condenados a ser livres, diz o filósofo, embora a liberdade do homem moderno não tenha ainda se resolvido -- homem que anda transformado quase irreversivelmente pela tecnologia. O "eXistenZ" crononberguiano antecipa esse império do virtual; é um ensaio dessa modalidade mutante do existencialismo. Sem condenações, sem revoltas. Tudo é natural ao jogo. A vida é como um jogo. Primitivismo e tecnologia. A revanche da Natureza. Reino da mutação, templo do prazer, paraíso artificial e desencantos por segundo. É a nova Natureza, mãe de todas essas indeterminações.

Conectar-se nesta realidade virtual naturalizante por "bio-portas" faz o homem em simbiose com o próprio artefato tecnológico, para que volte digitalizado sem noção de nenhuma realidade. Realidade descontrastada que seja, (des)velada de multi-egos; nada "inconsciente", em tudo aflorada pelo torpor da "naturalidade". Um caos organizado.