domingo, janeiro 02, 2011

ruído nas imagens perfeitas

Uma nova curiosidade vem se transformando em pesquisa. A fotografia por certo auxilia a testemunharmos um mundo sempre em permanente transformação. Se antes víamos o céu sempre azul é porque não sabíamos que há milhares de cores cianas que se fundem noutros azuis e noutras matizes. Aliás, não há possibilidade de encontrar cores que se evaporam da vista sem perguntarmos a elas se estavam ou não “destinadas” a representar este ou aquele tema. Desta forma o processo em preto e branco e de outros mais antigos vêm sendo perpetuados não como uma nostálgica representação fotográfica do mundo, mas, especialmente, porque ousam recuperar novas possibilidades de representação. A banalização do registro fotográfico, a partir do aparato digital, é um fenômeno crescente, correndo o risco de normatizar o simulacro em detrimento da reflexividade das imagens.

Imagens reflexivas? Não se trata de categoria estética, nem muito menos de um conceito consolidado nas artes. Mesmo assim, a reflexividade esteve presente em várias correntes estéticas que se propunham a repensar a humanidade e suas obras. Na Idade Média, não isenta disto, havia obviamente a participação deste pensar humano mesmo que o referencial fosse a partir do dogma religioso ou da “mitologia” cristã. Nos seiscentos, mais ainda o humanismo herdado da Antiguidade soube renovar a leitura da Natureza e dos Homens. Afinal, a criatividade é inerente à inteligência humana desde que as primeiras imagens da vida puderam ser projetadas em cavernas (ou nos sonhos/imaginação). A luz é contemporânea da humanidade, assim como sua manipulação e sua reinvenção. Se há imagens perfeitas, é um foro de discussão sem fim. Há muita polêmica entre a perfeição e a invenção. Fiat Lux! Faça-se luz para que enxerguemos criticamente a realidade.

Daí nos perguntarmos se a fotografia digital desumaniza a arte. Talvez em parte, sim, muito embora tal desumanização seja também uma forma crítica de reconstruir o discurso das formas e das cores. Se por um lado o pixel é uma tentativa de representar em perfeita verossimilhança a realidade, por outro pode ser a ruptura com a reflexividade sobre as coisas, os sentimentos e os pensares que pulsam na/com a câmera em punho sob a vista perspicaz. É possível, então, unir a revolução com a tradição. Se entendermos o universo digital como revolucionário na ordem representativa e fotográfica, por outro lado os processos antigos (que continuam inovadores) igualmente fotográficos (a exemplo do Van Dyke Brown, Cianotipia etc) também constituem um ruído essencial neste espírito reflexivo da vida/morte, do homem/natureza, da paisagem/lugar, do tempo/espaço, do cosmos e do caos. Seria um absurdo pensar que a ciência busca a perfeição das imagens, quando sabemos ser igualmente insólito querer representar/experimentar a existência individual ou social com a lente única da crença absoluta dessa mesma perfeição. O poeta mineiro Dante Milano já nos advertia que é necessário ver o Céu desde o Inferno, e por isto o “ruído” seja um exercício rico entre o analógico e o digital.

Créditos da Imagem: Henrique Torres (2009) [conforme autor-fotógrafo, Quasipaisagens é uma série baseada na situação sui generis do bairro fortalezense do Serviluz e sua praia do Titanzinho. Situadas nas cercanias da zona portuária e historicamente segregadas do resto da cidade, essas belas paisagens têm, hoje, sua própria existência ameaçada por um empreendimento de indústria naval. Podem, portanto, nunca se tornar paisagens incorporadas à cidade. A captação em filme deteriorado e a impressão em marrom de Vandike me parecem corresponder bem a essa realidade.] Fonte: http://www.henriquetorres.net/quasipaisagens.html disponível em 02/01/2011.

Um comentário:

Amanda Teixeira disse...

Vermeer já revela à sua aprendiz, em “Moça com Brinco de Pérola”, que o céu não é monocromático.

As crianças costumam desenhar belas cumulonimbus azuis (e são constantemente – ou eram, no meu tempo? – repreendidas por não representarem as nuvens com suas “cores reais”: o branco ou o cinza).

Na infância é comum representar as pessoas com cores primárias e um sol personificado, com direito de ostentar olhos, sobrancelha e sorriso. Com a maturidade e as grandes tesouras que podam os brotinhos de liberdade, surgem seres humanos retratados com “cor de pele”, “bege” ou “marrom”.

Os tons pastéis passam a dominar a vida. A perfeição daquelas cenas que carregam todas as cores dos arcos celestes acaba se reduzindo num monótono, incorruptível e pouco delirante “ton sur ton”.

A fotografia digital parece carregar um pouco do peso próprio da maturidade: ainda guarda algo do aspecto revolucionário da juventude, mas traz também certos elementos reacionários próprios dos adultos: parece ser a causadora de um retorno às velhas ilusões de verossimilhança e às pretensões de transparência. As coisas já não têm as cores vistas com os olhos do coração.

Parece que o photoshop se transformou no novo brinquedo das crianças travessas, que têm, com esta ferramenta, o poder de maximizar ou atrofiar o efeito de realidade das fotografias.

PS.: este é o (longo) comentário de uma leiga francamente impressionada com o aspecto onírico da fotografia de Henrique Torres