quinta-feira, outubro 14, 2010

O Golem leperino e a nostalgia de um futuro perdido

A apreciação da obra de arte passa por uma experiência sensível conforme as referências que possuímos do mundo. Minha referência também é somada com as impressões do espaço do subúrbio de uma cidade em processo de metropolização. É o meu lugar de fala, ou de marcas do experienciado. Não importa nesta reflexão qual localização ela participa no mapa múndi, embora seja essencial a especificidade que a vida mental - no dizer de Georg Simmel -, participa de meu encontro com a obra de Christian Leperino.

Naquela urbe que vivi na infância, lembro-me da paisagem que se configurava distante da área central. Fortaleza vivia nos anos 1970-80, uma avassaladora e repentina reestruturação de seu espaço urbano. Coube à política desenvolvimentista tardia implantar equipamentos nos corredores da cidade ligando o centro à periferia. E daí em diante, a malha urbana sofreu inúmeras ampliações e intercruzamentos, impondo aos habitantes se deslocarem a outros lugares. De onde saíram, a mercê de uma indenização que não pagava os juros de suas memórias e relações afetivas com o cotidiano daquele lugar, foram loteados os terenos e construídos conjuntos habitacionais cujas janelas não mais avistavam a paisagem natural, agora disciplinada pelo ferro e pelo concreto. As promessas de um reordenamento espacial da cidade punha em detrimento a horizontalidade dos encontros, para a vantagem da verticalização especulativa do lucro, ou do valor de troca que herdamos do trabalho alienado. O trabalho construtivo, daquele que a rua, o bairro e os lugares constituíam uma obra da história coletiva de seus moradores foi substituída pela uniformização e racionalização adversa aos seus sentidos e especificidades.

Vejo-me depois deslocado, dando um salto de 20 anos, para a baía de Guanabara, encimando a colina-mirante do Museu de Arte Contemporânea, em Niterói. Encontro-me por entre as vistas de 14 telas representando periferias metropolitanas, e um Golem de grandes dimensões entre elas. Imediatamente chama-nos atenção a ausência ou o anonimato dos sujeitos. São paisagens sem corpos. Somos então convocados a elas. A construção conceitual do artista nos afeta com um estranhamento ou uma espécie de insatisfação para com a imagem. Mas, ao mesmo tempo, se nos afasta também nos aproxima a experimentá-la. Nesta condição, a experiência real da corporeidade nos convoca a uma interseção de olhares e afetos. Na captura conceitual de Ana Francisca de Azevedo (2009), ocorre-me o trânsito entre um olho descorporizado para um olho incarnado, de uma geografia que segue além do olhar espectatorial, contemplativo, não pestanejante, para uma geografia corpórea de nostalgia. E nesta memória repentina da tela me traduzo como golem, como um homem-máquina, um homem apartado de seus aterfatos, donde as lembranças do subúrbio da infância - dos valores, atos e emoções vividos naquele espaço - foram alterados a uma cultura artificial do progresso e da racionalização da técnica. Aliás, conversando com Geertz (1978), aquilo que interpretava como artefato cultural da paisagem de minha infância vai se encarnando no maquinismo progressivo da cidade que me chega ao ritmo e na embriaguez da tecnologia triufante.


Esse céu que parece uma fumaça crepuscular vindo de alguma fábrica, faz recordar o perigo de avançar além dos novos limites ao redor da indústria de sabão que se instalara, de suas chaminés que substituíram a vegetação exuberante na qual me aventurava com os colegas em narrativas dos finais de tarde, cuja Natureza constituía uma forma simbólica de múltiplos sentidos. Mas tornei-me golem, num ser imperfeito e não desenvolvido - no dizer de Emile Zola (comentando O Golem, de Gustav Meyrink, 1914) -, nascido do sonho da humanidade sublimado na construção do mito da própria deficiência, das angústias da comunidade. O monstro de barro criado por Paul Vegener, em Der Golem (1920), constituíu no cinema, um preâmbulo ao anti-semitismo. Ironicamente, a própria história em torno do Golem, na sua versão literária, fora criada enquanto afirmação do povo judeu e símbolo da proteção (mítica) contra ataques anti-semitas. Enquanto monstros do barro medievais ou barrocos, avançamos em direção a frankesteins, clones, replicantes e cyborgs.

Nas distopias contemporâneas vêem-se as sombras de um futuro que se projeta como algo sombrio. Mas em favor da liberdade e de retornar ao estado de homem que sente uma existência que precede a razão, o homem-máquina leperino é convocado a voltar ao barro para construir autenticamente sua própria existência. Completaria Heidegger (1989, p.77): pode no seu ser ou escolher-se e conquistar-se ou então perder-se, ou seja, ou conquistar-se só aparentemente.

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Referências
AZEVEDO, A. F. de. Desgeografização do corpo, uma olítica do lugar. In: AZEVEDO, A. F. de; SARMENTO, J. (orgs). Geografias do corpo: ensaior de geografia cultural. Porto: Figueirinhas, 2009.
GEERTZ, C. A interpretação dss culturas. Rio de Janeiro:Zahar, 1978.
HEIDEGGER, M. Ser e tempo. 3e. Petropolis: Vozes, 1989.
MEYRINK, G. El Golem, 1914 (Disponível em http://www.elortiba.org/bazavos2html - acesso em 10/10/2010.
SIMMEL, G. A metropole e a vida mental. Mana 11 (2): 577-591, 2005

6 comentários:

Amanda Teixeira disse...

Apesar de apreciar a figura mágica desta criatura que nasce do barro, o Golem, gostaria de destacar que temos a capacidade de interagir com o espaço de concreto e fumaça, de distinguir diversos matizes nos cinzas das cidades e de vislumbrar arco-íris nas chuvas ácidas. Se a tua lembrança é severa e incorpora uma Natureza que foi brutalmente destituída de seus primeiros atributos, a minha é leve, pois nela tudo já era monóxido de carbono e ausência de estrelas. Aprendi a conviver com esse espaço e até hoje me sinto parte dele, embora não dispense o encanto dos paraísos idílicos dos quais já nasci desenraizada. Nem tudo é uniforme, cruel e racional nessas metrópoles em formato de xadrez, pois os homens não são peões ou torres: são super-rainhas, que caminham em todas as direções, ultrapassam as determinações impostas, convivem com as outras peças do tabuleiro e as afetam tanto quanto são afetadas por elas. Nós somos árvores que rompem o asfalto. Talvez quem já nasça máquina -- como os replicantes de Blade Runner -- esteja mais adaptado e inclinado a sentir e saber viver conforme os ditames, as limitações e as multiplicidades dessas grandes cidades repletas de néon. Essa é a nossa origem. Nós, concebidos, criados e inseridos nessa nova modalidade de vida, somos nossos próprios "Golens".

Lara Leon disse...

Muito bom texto Glauco!

Marcos Martins disse...

Glauco,

o deslocamento do corpo leva consigo o deslocamento da memória, muito embora o corpo sempre esteja chegando primeiro que nossos pensamentos, deixando rastros. Precisamos ter humildade para entendermos os processos e os desvios em nossas vidas, afinal nem sempre o caminho reto e que parece-nos seguro é o melhor, pois o risco nos motiva, nos anima a andar acima dos nossos limites.

Aqui a arte pode nos é aporte, servirdo-nos de ancora para pousarmos nos braços dos ancoradouros-portos, materializadas em deusas, afrodites enlouquecidas que sacia-nos e sacia-se comendo-nos com suas bocas.

Sim, a experiencia da arte passa pela experiencia do sensivel, das cidades e das pessoas.

O deslocamento no tempo e no espaço coloca-nos em xeque, apresentando-nos uma cidade cheia de vazios e cheios, espaços negativos e positivos, antagonismos que o artista coloca em suas telas com maestria, ao suscintar a figura do solitário na urbe. Esta tensão na obra é reforçada pelo Golem, firmando a postura de capturar o que não vermos com os olhos, pondo-nos a construir imagens de cidade onde os corpos são ausencias-presenças ao mesmo tempo.

A construção conceitual do artista nos causa mais que estranhamento, chega a nos causar incômodo capturando os corpos dos espectadores para o interior da tela, fazendo-os refletir sobre si mesmo. Minhas experiencias,posso hoje revisita-las pelo olhar da arte ou mesmo quando observo o mundo-ilha que vivo hoje, avisto os grandes navios cargueiros, carregados de caixas coloridas de aço, cidades empilhadas, container. Mas se a função de todo container é conter algo, sendo preenchido com toda sorte de virtudes e vícios, também sou container mas quisera ser navio e beijar o mar, quebrando as ondas, andando velozmente de um lugar ao outro, vadiando nos portos desta vida, até o momento em que minha proa toque o fundo do oceano, dando-me o descanso e o silencio das escuras aguas profundas.

abs

Marcos Martins

Marcos Martins disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Glauco Vieira disse...

Marcos,

é bom ouvir seui "testemunho", e saber que o seu "container" anela a motricidade no mar. Esse mar é o sentido de totalidade, cujas mobilidades entre distância e proximidades possibilitam avançar em torno de portos materializados ou abstratos. Para cada ancoragem há uma presença e uma ausência, embora os diferentes ângulos tergiversem a perspectiva única, como num quadro de Cezanne quando somos convocados a aparição-desaparição dos objetos na tela. Em cada paisagem corpórea há o grito de memória ou de uma presença na ausência. E em cada futuro hospeda-se uma paisagem desejada no presente. Ser-no-mundo é a (a)ventura dos corpos no espaço-tempo da humanidade e da história.

UFC/Cariri disse...

É só pra deixar um alô! Que bom que vc está feliz e escrevendo companheiro... Mas não esqueça do rigor científico... pois é tarefa difícil alfabetizar a alegria... o entusiasmo desmedido é avesso ao rigor. Abraço.