segunda-feira, fevereiro 17, 2014

a queda: trilogia "broken heart"

Há, por certo, três formas de perceber a queda de relacionamentos afetivos - para não dizer que o outono antecede o inverno da alma. Tais formas não são absolutas e nem definitivas, apenas mui observadas na vida real. O cinema, de forma mais sutil e ao mesmo tempo grave, anuncia essas três possibilidades de crepúsculo dos amantes ou do que sobrou dessas relações. Claro que para cada um tais finezas e rudezas irão chegar ora como alerta ora como constatação. Não caberia aqui comentar as filigranas de cada uma delas. Basta que anunciemos essas três situações como oferendas ao fervoroso cinéfilo que busca sorver também das obras fílmicas o entendimento de corações partidos. Nessa trilogia broken heart - que assim a denominamos - há intercruzamentos inevitáveis. São imbricações que se encontram na temática renitente do "e agora, que faço eu se perdi meu amor". Ou o amor é quem se lhe desencontrou. Tudo ao verso ou ao inverso, não importa, os corações um dia se dilaceram. Lembremos, entretanto, com Carl Gustav Jung a seguinte advertência: conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana, seja apenas outra alma humana. São três textos fílmicos a se comunicar com a alma humana, e que falam com muita generosidade do encontro de almas em caos. Passamos a comentar rapidamente cada um deles para, por fim, lembrar com Nietzsche que é preciso ter um caos dentro de si para dar à luz uma estrela cintilante. Vamos então aos filmes e às três formas de encarar a dor das relações em queda.

Sugiro que comecemos com Closer: perto demais (2004, Mike Nichols). Queda número hum de corações: a crueldade. Bondade e humanidade nos pés. Quatro seres que se trocam como num jogo em quatrilho. Nove cartadas, vencendo aquele que faz o maior número de vazas. A maior perversidade está no jogo das palavras. Em Closer os diálogos entre os amantes são aqueles que na vida real são omitidos em pensamentos, por isso ásperos em demasia e incrivelmente realistas. As palavras duras e cruas são instrumentos temerosos da crueldade. A colheita acabou. Ficaram as sementes ou os grãos para uma próxima estação. As ações dos personagens são previsíveis, mas imprevisíveis são as traições maquiavélicas e outros expedientes de fina arte da guerra. Cada um para um lado, vencendo (ou perdendo) o mais perspicaz.

Na seqüência, cabe a visualização de Ela (2013, Spike Jozen). Queda segunda: a solidão. É a tônica desse filme. Meia idade, homem, em quatro paredes. Lembranças boas e más da "ex". Mas predominam as boas, porque as más doem demais, são evitadas. E nessa solidão a fuga para o amor virtual, num futuro próximo, tenta preencher a alma de um carinho estranho, imaginário. O entorpecimento/obscurecimento dos sentidos. Um amor distante e ao mesmo tempo sonhador, mas esquisitamente forte e sincero: um amor com um ser cibernético, com uma inteligência artificial mui compreensiva e terrivelmente ciumenta. Até que ponto a solitude se preenche de imaginário, fazendo o coração embriagar-se ou quebrar-se completamente de torpor? A solidão provoca outras fugas. A imensidão do isolamento numa megalópole é potencializada. E perder-se nas ruas talvez seja uma outra possibilidade de se levantar da queda.

Por fim, a tríade se completa com Azul é a cor mais quente (2013, Abdellatif Kechiche). Originalmente, intitulado A Vida de Adele (La vie d'Adéle), trata da queda terceira: a indiferença. Distanciamento e frieza são sinônimos. A história é conhecida: ao se sentir sozinha na relação cai em traição, que se aproxima do paradoxo buarqueano te perdoo por te trair. A queda começa aqui, mas antes prenunciada por outros distanciamentos/desculpas: falta de afinidades, linguagem estranhada; comunicação monossilábica; precipícios em vistas. Como medir distâncias sem prejuízos; como aparar arestas sem o outro se permitir? A alma quedada busca a esperança em vão de reconquistar o paraíso perdido, o amor que mudou de lado. Como uma sideway - estrada ao lado, mas sem poder tocar-se, oblíquas, como em Paralelas de Belchior: e as paralelas dos pneus n'água das ruas são duas estradas nuas em que foges do que é teu. A apatia e o desânimo resvalam em indiferença ao suplício d'Adèle - ou dos que já sofreram tal queda.

Sei que não estou sendo nada encorajador, amiga/o cinéfila/o. Mas nestas três formas quedadas de relações vale apreciar a boa arte cinematográfica. Utilíssimo para os navegantes do amor aspirarem, apesar de tudo, novas primaveras de amor. Porém advirto que a trilha sonora de cada um dos filmes catalizam sobremaneira a dor. Caso seja muito sensível a essa mistura de música com imagens, evite assistir Closer de primeira, prefira iniciar em ordem inversa, começando com a vida de Adéle. E neste espírito de queda, Roland Barthes está presente nos três discursos fílmicos. Eles dialogam entre si: Como termina um amor? - O quê? Termina? Em suma ninguém - exceto os outros - nunca sabe disso; uma espécie de inocência mascara o fim dessa coisa concebida, afirmada, vivida como se fosse eterna.

2 comentários:

Kyanja Lee disse...

Assisti aos três filmes mencionados e gostei de todos. Apreciei bastante sua análise e mesmo a palavra-síntese proposta a cada um dos filmes.

Glauco Vieira disse...

Essas palavras-sínteses são pura realidade, não é mesmo? Não são difíceis de percebe-las na vida! Incrível como os filmes potencializam cada uma delas...