sexta-feira, janeiro 18, 2008

O homem, a incomunicabilidade e sua existência

Vamos contribuir um pouco sobre este trabalho em torno da temática da “perfeição”[1], que traz em si várias inquietudes subjacentes, e dentre elas gostaria de destacar a da “incomunicabilidade”. Talvez pela influência mais direta que o cinema tenha nos fornecido, sobretudo pela filmografia de alguns dos melhores representantes da arte cinematográfica dos anos 1960, cujas obras desenrolam-se no cenário europeu, mantendo-se ressonantes aos sintomas da modernidade, durante as décadas posteriores ao pós-guerra, e ao “modismo” existencialista que imperava os debates nos nichos intelectuais à época. Em seguida, façamos um enlace com o “mal-estar” social que nos deixou como herança o século passado, para evocar novamente o tema da incomunicabilidade que persiste no mundo hodierno. Que seja oportuno, então, iniciarmos com um mote literário.

Júlio Cortázar, em sua coletânea de contos denominada Octaedro, de 1964, conta-nos em primeira pessoa, em o Manuscrito achado num bolso, sobre a existência conturbada de um pianista que procura o sentido da vida no subsolo da cidade. O cenário onde se desenrola praticamente toda a narrativa é o do mundo submerso do trem metropolitano, ou metrô, de Paris. Pela universalidade do protagonista, a mesma história poderia ter sido no subte portenho ou no metrô paulista. O mais essencial, entretanto, é saber que o personagem de Cortázar, sua subjetividade, ou seu interior convulsionado por um passado que não nos informa o autor, é o próprio subsolo da cidade, ou seu mundo inconsciente. O pianista é aquele mundo submerso do metrô que, seguindo a metáfora, possui uma rede intrincada de túneis, de diversos tipos de pessoas circulando (auto-imagens; representações de si mesmo). A trama que irá se desenrolar será a da busca do pianista por algo que o deixe seguro ou lhe dê algum sentindo na vida. Decide-se então, não pela música, como mais fácil imaginaríamos, embora a música ainda fosse uma tentativa de comunicação com o mundo, mas decide-se pela alteridade, a buscar uma mulher que o redima ou que lhe possa valer um sentido mais “perfeito” em sua angustiosa existência. Daí em diante começa um jogo que se volta contra ele. Iniciado o jogo, passa a seguir possíveis “eleitas”, ou equivocadamente as imagens inconscientes que a cada uma delas anseia, como imagens refletidas nos vidros das janelas do trem. Fantasia e realidade confundem-se. Antes de sair de casa ele dá um nome feminino a um trajeto que irá fazer no metrô, e se este trajeto coincidir com o destino reservado ao mesmo itinerário que uma de suas eleitas possa fazer, então esta será a mulher de sua vida ou seu “porto seguro”. Mas as regras deste jogo inconsciente acabam por lhe trair, e sua relação com o mundo ainda lhe deixa inseguro, angustiado e com a debilidade de uma “incomunicabilidade” persistente[2].

A incomunicabilidade do personagem de Cortázar é um exemplo da própria condição existencial do homem moderno. Mesmo que a arte desenvolvida pelo indivíduo seja um canal de comunicação com o mundo e com as pessoas, com o universo e outras subjetividades, mesmo assim a música, como instrumento de relação desse personagem, somente ela, não assegurava resolver todas as expectativas de ser e de estar no convívio com os outros. Para este personagem, assim como para o homem da modernidade, pertencendo a um mundo laicizado, no qual já não se buscam respostas cabais no sobrenatural, na fé religiosa ou em qualquer outro sistema dogmático; ele passa a perseguir, incessantemente, respostas às inquietudes que lhe privam a alma de conhecer o que presume ser realidade: a alteridade, ou seja, uma busca de si no encontro com outros indivíduos, embora não seja a saída definitiva para sua insatisfação. É o que também observamos nos filmes de Michelangelo Antonioni.

No início da década de 1960, muito influenciada pelas idéias do existencialismo de Jean Paul Sartre, Martin Heidegger, Maurice Merleau-Ponty, Jean Hippolyte, Simone de Beauvoir, Albert Camus, a arte ressonará em produções cujo mote da “incomunicabilidade” persistirá como tema valorizado. No cinema, Antonioni será um representante exponencial do existencialismo, desenvolvido plenamente em sua “trilogia da incomunicabilidade”, com as obras A Aventura (1960), A Noite (1961) e O Eclipse (1962). Nestes três filmes é recorrente o argumento da crise conjugal, ou a discussão de relação, embora o objetivo do cineasta seja o de destacar os sintomas que as relações do mundo ocidental moderno desencadearam na alma humana, principalmente a dificuldade de comunicação do homem com o mundo e com as pessoas. Em A Noite o protagonista personificará a vida de um escritor em crise de criação e da avalanche de relações truncadas com tudo o que lhe cerca; indiferente aos críticos, ao matrimônio, à sociedade, enfim, vivenciando a angústia sartriana. Em O ser e o nada, Sartre nos diz: “É absurdo nascermos, é absurdo morrermos” e os personagens de Antonioni, em A Noite, são conseqüentemente sartrianos em seu comportamento. Eles obedecem coerentemente ao pensamento de Sartre quando, ainda em O ser e o nada, o filósofo francês afirma: “Toda minha maneira de ser, manifesta liberdade igualmente, já que são os caminhos de ser meu próprio nada”. Não há mais “nada” além da existência conforme o pensamento existencialista, mas resta puramente o “ser” na existência que busca respostas numa liberdade ontológica. Ainda em A Noite de Antonioni a inquietante alteridade configurada na origem da incomunicabilidade do casal protagonista, de onde parece aflorar, na forma de angústia, o ciúme doentio, constitui-se como a Outra no seu ponto de bifurcação ou na curva de seu retorno.

Dito isto, é possível compreendermos que a condição existencial humana atual não se distanciou dessa perspectiva analisada no cinema existencialista europeu. Muito pelo contrário, dentro do que muitos autores sugerem, a condição pós-moderna do indivíduo leva-o agora a desacreditar da própria existência[3]. O irracionalismo, a assimetria, o paroxismo, a crueldade, o exagero, a barbárie, e demais pulsões dionisíacas repulsam cada vez mais o sonho moderno apolíneo – Eros e Thánatos convivendo beligerantes entre as construções e desconstruções da alma do ser na existência no(do) mundo. Incomunicabilidade catalisada pela vivência de relações em um novo espaço-tempo, cuja realidade material e virtual confunde-se no torvelinho de uma second life, tendo o individualismo como sinônimo de realização pessoal sob uma singularidade subjetiva; o direito de ser absolutamente si mesmo; personalização aliada à revolução de consumo, que segundo o pensamento do sociólogo Gilles Lipovetsky este hiper-individualismo é a consolidação do “consumismo da própria existência por meio da mídia multiplicada (...) o processo de personalização [que] gera o vazio colorido, a flutuação existencial na e pela abundância de modelos, sejam eles enfeitados pela convivência, pela ecologia, pela psicologia.”

Se evocados os valores perenes anelados pela modernidade, tais como a liberdade, a igualdade e a fraternidade, que foram tão caros a revolução progressista em fins do século XVIII, na França, percebemos que ainda resistem como ideais de um projeto inacabado desta modernidade inconclusa. A incomunicabilidade, neste sentido, seria somente uma dor passageira da alma humana frente ao projeto das Luzes. Mas se o Iluminismo está démodé, não custa nada tentar comunicar-se com a vida da melhor maneira possível. E talvez o melhor modo de se comunicar com a realidade seja o de buscar incansavelmente o sentido desconhecido que a vida não lhe apresentou ainda claramente, tanto numa perspectiva individual ou coletiva. Afinal todo indivíduo ou grupo social neste planeta já se questionou por que nasce, por que vive, por que morre, e no meio de tudo, por que sofre. E buscar respostas sempre haverá de ser um encontro consigo próprio. Perfeição é buscar-se incansavelmente, é um diálogo permanente consigo mesmo.
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[1]Este texto é alusivo e dedicado à obra musical “Em busca da perfeição”, composta por Dihelson Mendonça (músico e pianista residente em Crato-CE)
[2] No Brasil, este conto de Cortázar fora adaptado por Roberto Gervitz ao cinema, com o título “Jogo Subterrâneo” (2005).
[3]Sobre esta questão, sugerimos a lúcida análise do sociólogo Gilles Lipovetsky em sua obra A Era do Vazio: ensaios sobre o individualismo contemporâneo (Barueri,SP: Manole, 2005).

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